“No Brasil, problemas no transporte público fazem com que o vale-transporte perca sua eficácia”
A qualidade dos transportes sobre superfícies, a extensão da malha metroferroviária e a falta de investimentos públicos em mobilidade aumentam o tempo de viagem de muitos trabalhadores até o local do trabalho. Por conta de inúmeras deficiências no transporte público no Brasil, o benefício do vale-transporte, uma conquista histórica, é colocado em cheque.
A lei do vale-transporte (Nº. 7.418), de 1985, tem o objetivo de garantir o direito de ir e vir dos trabalhadores ao local do trabalho, com segurança, comodidade e pontualidade. Sem distância mínima ou número máximo de passagens, é obrigação das empresas conceder o vale-transporte aos colaboradores contratados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e que necessitam utilizar o transporte público.
Otávio Cunha, presidente executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), conta que a aprovação da lei do vale-transporte foi uma das primeiras conquistas da organização. “Foi muito importante para o trabalhador brasileiro, principalmente para o de baixa renda que dependente do transporte público. Depois da CLT, o vale-transporte talvez tenha sido o maior benefício conquistado”, pondera.
Apesar de ser uma conquista importante e um benefício fundamental, o vale-transporte não é utilizado de maneira efetiva por parte dos trabalhadores brasileiros. O problema da mobilidade nas grandes cidades e as condições insatisfatórias do transporte público no país são fatores essenciais que levam muitas pessoas a não utilizarem o benefício do vale-transporte.
Letícia Abreu, head customer, mora no Brooklin e trabalha na Vila Congonhas*. Ela deixou de utilizar o vale-transporte para ir ao trabalho em troca da agilidade e do conforto. “De carro, venho ao meu trabalho em 12 minutos. De ônibus, por haver apenas uma opção, entre esperar o ônibus passar e chegar ao destino, a demora é em torno de 40 minutos”, conta.
Segundo Letícia, ela poderia usar o monotrilho da Avenida Roberto Marinho – prometido para a Copa do Mundo de 2014 – se o mesmo estivesse concluído. “Com estas obras sem previsão de término, não penso em deixar o carro em casa. Acho que se o governo incentivasse e melhorasse o transporte público, juntamente com as empresas de transporte alternativo – bikes e patinetes – diminuiria o uso de carros e em consequência o fluxo do trânsito”.
De acordo com Otávio Cunha, presidente executivo da NTU, a velocidade comercial dos ônibus que já foi de 25 km/h, hoje, está em torno de 13 km/h. “Nós estamos longe de um serviço de transporte público ideal. O transporte público precisa ter prioridade na via. Se você considerar que um único ônibus pode substituir 40 automóveis na rua, essa lógica explica que investir em transporte público é contribuir para a qualidade de vida da cidade”, afirma.
Equiparar a qualidade dos modais – entre ônibus e transportes sobre trilhos, por exemplo – é um desafio. Faixas exclusivas para ônibus muitas vezes não contribuem para solucionar os problemas. Trens e metrôs lotados colocam em cheque a excelência do transporte sobre trilhos no Brasil. Igor Castro, engenheiro eletricista, mora no Brooklin e trabalha na Vila Olímpia. Utiliza ônibus, mas não possui vale-transporte. Para ele, o principal problema é a superlotação em horários de pico, principalmente em áreas mais populosas. “Outra questão que vem incomodando bastante é o trânsito em corredores de ônibus, muitas vezes causado por táxis ou carros que simplesmente não respeitam o espaço exclusivo”, comenta.
Para João Gouveia Ferrão Neto, vice-presidente executivo da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), o trabalhador tem a opção de escolher o transporte que preferir. De acordo com Neto, é necessário criar condições atrativas para que as pessoas possam fazer uso desses transportes ao priorizar investimentos no plano de mobilidade urbana. “A falta de transporte sobre trilhos faz com que o trabalhador opte pelo ônibus ou pelo próprio carro. A ANPTrilhos não enxerga que o ônibus é concorrente do trilho, eles são complementares”, completa.
No Brasil, são contabilizados até o momento 73 grandes regiões metropolitanas. Somente 12 possuem um sistema de transporte de passageiros sobre trilhos. Cerca de mil quilômetros de malha metroferroviária transportam em média 10 milhões de passageiros por dia – 82% entre São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ).
A falta de investimentos em mobilidade no Brasil fica evidente ao comparar o metrô de São Paulo – inaugurado em 1974, o qual conta atualmente com uma extensão de 96 quilômetros de malha metroferroviária – com o metrô da Cidade do México, inaugurado do mesmo ano, o qual conta, hoje, com 200 quilômetros.
Mônica Alves, publicitária, mora em Pinheiros e trabalha no Morumbi. Apesar do vale-transporte, prefere utilizar o bilhete único. “O principal problema é que não tem manutenção. Trem e metrô são sempre muito cheios. Deveria ter mais trens em um espaço de tempo menor”, avalia. Ela possui duas opções para chegar ao trabalho: com dois ônibus ou com um ônibus e um trem. Com o trem, o caminho é mais rápido, porém, como geralmente é mais lotado, prefere ir com o ônibus pelo conforto.
De acordo com a publicitária, mesmo com as faixas exclusivas, os ônibus ainda demoram muito para cumprir o trajeto. “A qualidade dos ônibus é boa, mas os terminais precisam melhorar, serem mais seguros. O sistema do bilhete único precisa ser modernizado porque não é prático. Só consigo carregar nos terminais ou em alguma estação que tenha máquina de cartão – as quais muitas vezes não estão funcionando. Já a bilheteria aceita apenas dinheiro”.
A ANPTrilhos entregou ao governo federal um documento para fomentar o transporte sobre trilhos no Brasil dividido em cinco pontos: Criar um plano estratégico de mobilidade urbana nacional; Priorizar investimentos no Plano de Mobilidade Urbana Nacional; Fortalecer os marcos regulatórios; Incentivar a modernização e a criação dos sistemas de transportes de passageiros sobre trilhos; Criar taxas de financiamento mais atrativas para projetos estruturantes de transportes sustentáveis.
O vice-presidente executivo na ANPTrilhos salienta que o transporte público de passageiros é um indutor do desenvolvimento. “Onde você leva o metrô, as áreas são mais valorizadas”, finaliza. Já o presidente na NTU conclui que é possível melhorar a qualidade do transporte público, mas é preciso investimentos públicos e profissionais qualificados. “É uma competência que cabe ao setor público. Infelizmente, não temos uma política brasileira voltada para a mobilidade urbana. Esse é um assunto mal resolvido ainda por todos nós”.
Box
Uma pesquisa do Instituto PARAR em parceria com a MindMiners, publicada em 2018, demonstrou como a mobilidade impacta a vida das pessoas no Brasil. Verificou-se que 55% dos participantes estavam insatisfeitos com o transporte público em suas cidades, enquanto 58% tinham medo de depender do mesmo. 53% abandonariam o carro próprio se tivessem outras opções de transporte para ir e voltar do trabalho, 49% prefeririam trabalhar perto de casa mesmo ganhando 10% menos e 60% das empresas nunca demonstraram preocupação com o tempo de deslocamento dos colaboradores.
*Todos os entrevistados moram em São Paulo (SP)
💡 Guilherme Popolin